Não deveria existir mãe solo quando o tema é criação.
Ninguém deveria criar nada sozinho, eu não quero ser uma mãe solo desse projeto e por isso essa é uma newsletter de despedida :~
Trouxe alguns livros e publicações do Festival Etceteras: festival feminista de design e edição — que aconteceu na cidade do Porto entre os dias 5 e 7 de outubro — onde pude conduzir pela primeira vez um workshop línguamãe presencialmente. Um dos livros que trouxe na mala foi o Why Call it Labor? On Motherhood and Art Work da Editora Archive Books que começa com um prefácio da editora egípcia Mai Abu El Dahab, ela escreve:
“This is a book we need as a conversation starter, as a prompt for events and workshops, and as a tool for organizing at large.”
“Este é um livro que precisamos para iniciar conversas, como estímulo para eventos e workshops e como ferramenta para organização em geral.”
Em um momento tão feliz de reconhecimento do meu trabalho e do trabalho de Cacau ao longo dos últimos três anos, eu consegui identificar no línguamãe esse mesmo espaço de partida para muitas conversas que Mai Abu El Dahab cita no texto dela.
Num mix de felicidade extrema e o sentimento de algo que estava por terminar e eu não sabia o que, depois de concluir o workshop no festival (e ter presenciado quatro mulheres combinando o grupo de escrita conjunta), saí do prédio da reitoria da Universidade, peguei nos livros, nos textos da oficina e fui sentar na mesma praça que comecei a ter contrações quando a minha filha nasceu. Peguei no celular pra desanuviar um pouco ou tentar recuperar a minha energia enquanto encho a minha cabeça com mais imagens e vejo os escritos: “saber quando sair é tão importante: da festa, de um trabalho, de uma relação” num post aleatório.
Tudo aquilo parecia uma materialização do que estava acontecendo nos últimos meses, a saída de Cacau do projeto, eu continuando / tentando levar o barco, não desistindo porque afinal é preciso falar e muito ainda sobre as maternidades e sobre as não maternidades.
Mas foi aí, depois desse ciclo se materializar que ao longo dos dias posteriores uma nuvem foi se dissipando da minha cabeça: eu não estou sabendo cuidar sozinha disso. O línguamãe é como uma criança e eu não quero criar ela sozinha. Eu não quero fazer isso sozinha. Concluí.
Antes de chegar neste lugar elucidativo que parece tão cristalino agora, conversei com algumas pessoas sobre me afastar / terminar / o projeto, perguntei pro tarô, pra astrologia, pra minha terapeuta, meditei diariamente, pedi sinais, escrevi várias vezes no meu caderno, mas nada me fez chegar tão próximo de uma conclusão quanto viver presencialmente o que um dia sonhamos.
E isto não é triste, na verdade, o desenlace vem primeiro em forma de nó e depois uma alegria imensa de ter conseguido enxergar. É com alegria que o novelo se desfaz. Nascemos no coletivo e seremos coletivo, mas agora sem a nossa constante presença. Os debates que iniciamos estão acontecendo porque com a gente outros vários coletivos, escritoras, pesquisadoras, artistas, acadêmicas, pensantes do mundo estão iniciando e continuando essa conversa, em grupos de whatsapp, posts no instagram, zines, livros publicados, newsletters, bilhetes escritos e colados nas paredes. E precisamos lembrar: o línguamãe sempre foi antes de tudo um projeto de amizade.
É preciso SIM que duas ou mais pessoas cuidem deste tema, um tema muito importante e que precisa de muito trabalho. Um trabalho sério que precisa de comprometimento e energia e que talvez eu não dê conta agora. Por ora, um afastamento desse objeto que brilha, mas que pessoalmente ou de uma outra maneira eu volte a me relacionar. A partir de um outro ponto de vista que quero construir.
Acho sim que começamos muitas coisas, nossa! Traduzimos, editamos, conduzimos, mediamos, ouvimos, incentivamos, estivemos presentes. Num total produzimos:
1 antologia Te coloco onde você não está Cadernos de Literatura e Maternidade uma coletânea com os textos de nossas alunas (2022).
1 turma de Clube de Leitura em parceria com o Clube Traça (2022).
2 turmas de Faísca: lendo e escrevendo a maternidade em parceria com o Clube Traça (2023).
4 turmas do workshop online Línguamãe (2021 e 2022).
1 workshop presencial Línguamãe: uma língua para romper silêncios no Festival Eteceteras (2023).
1 oficina online Línguamãe: uma língua para romper silêncios no Projeto Elas Escrevem (2023).
1 curadoria assinada no Projeto Elas Escrevem (2023).
1 aula aberta Línguamãe: uma língua para romper silêncios (2021).
1 aula aberta com Danielle Magalhães “No fio dos nós das avós” (2023).
1 leitura ininterrupta online e ao vivo do livro “Pequenas erupções” de Gabriela do Amaral (2022).
9 autoras traduzidas para o português Rachel Cusk, Adrienne Rich, Silvia Nanclares, Susan Griffin, Rivka Galchen, Ursula K. Le Guin, Bárbara Duhau, Lucia Berlin, Alicia Ostriker.
1 artigo A Línguamãe – Oficina De Leitura E Escrita Sobre Literatura e Maternidade Como Espaço De Resistência E Pensamento Das Mães Na Pandemia na revista acadêmica “CEM – Cultura, Espaço & Memória (Di)stabat mater: representações da maternidade” da Universidade do Porto.
11 newsletters enviadas pelo substack.
40 livros discutidos em aulas, oficinas, conversas e clubes de leitura.
O línguamãe foi um espaço de produção de conhecimento, de luta, de criatividade, de construção coletiva.
Sonhamos em ter um podcast, uma editora, uma livraria, em organizar uma residência para mães artistas, sonhamos com um festival literário sobre criar y criar, uma mostra de filmes, uma bienal da maternidade, sonhamos com uma bancada do cuidado em Brasília, e provavelmente continuaremos sonhando, de outras maneiras, num espaço íntimo, com tempo, numa reestruturação subjetiva. Eu, Gabriela, não vou abandonar o tema porque é impossível desabitar a maternidade mas por agora, um respiro, uma distância e que as conversas continuem.
Agradeço de coração à todas parceiras Juliana Bandeira, Clarissa Galvão, Danielle Magalhães, Maria Carolina Fenati, Julia Raiz, Mafalda Sofia Gomes, Isabeli Santiago, Nina Paim, Isabel Duarte, Maya Ober, Joana Von Bonhorst, Bárbara Duhau, Thaís Fabris, Bibiana Haygert, Julia Hirszman, Amnah Saad, Naiara S. Lemos, Lívia Aguiar, Luisa Benevides, Fernanda Regaldo à todas as alunas que confiaram na gente desde o início e incentivaram o projeto, às amigas que estão sempre lendo, editando, sugerindo leituras, filmes, artistas, recortes, abordagens, àquelas que seguem confiando no nosso trabalho. Às meninas Matilda y Flora <3. Muito obrigada e até breve.
Com amor,
Gahbe
ps: pra quem quiser continuar me lendo em outros temas comecei em setembro a escrever cascata newsletter sobre processos de escrita, livros, modos de vida e aleatoriedades. <3
ps2: se você estiver lendo essa newsletter e precisar de qualquer informação sobre o projeto, se quiser conversar, se estiver precisando de um espaço de escuta, se quiser trocar uma ideia, estou aqui. basta responder este e-mail.
Bônus track
Os 40 livros que discutimos ao longo desses 3 anos + uma bibliografia complementar.
1. Morra, Amor, Ariana Harwicz
2. O Acontecimento, Annie Ernaux
3. Quarto de despejo - Diário de uma favelada, Carolina Maria de Jesus
4. Argonautas, Maggie Nelson
5. Autobiografia precoce, Pagu
6. O corpo em que nasci, Guadalupe Nettel
7. Arquivo das crianças perdidas, Valeria Luiselli
8. A Filha Única, Guadalupe Nettel
9. Solitária, Eliane Alves Cruz
10. Aos prantos no mercado, Michelle Zauner
11. Dança para Cavalos, Ana Estaregui
12. Fósforo, Ana Pessoa
13. A life´s work, Rachel Cusk
14. Quién quiere ser madre, Silvia Nanclares
15. Sei porque canta o pássaro na gaiola, Maya Angelou
16. Um amor incômodo, Elena Ferrante
17. A mãe de todas as perguntas: reflexões sobre os novos feminismos, Rebecca Solnit
18. Irmã outsider: Ensaios e conferências, Audre Lorde
19. Pequenas Resistências, Rivka Galchen
20. Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution, Adrienne Rich
21. Escute as feras, Natassja Martin
22. Amada, Toni Morrison
23. A história do leite, Monica Ojeda
24. A cachorra, Pilar Quintana
25. Maternidad y Creación - Lecturas Essenciales, Moyra Davey
26. Língua-mãe ou Pequenas Erupções, Gabriela do Amaral
27. El centro del Amor, Bárbara Duhau
28. A ficção como cesta: uma teoria e outros ensaios, Ursula K. Le Guin
29. Azul de um minuto: poemas entre mãe e filho, Luisa Benevides
30. Welcome Home, Lucia Berlin
31. A primavera das pragas, Ana Carolina Assis
32. A vós, Laís Auler e Lívia Auler
33. Nascente, Heleine Fernandes
34. Ninguém quis ver, Bruna Mitrano
35. A libertação de Laura, Helena Zelic
36. Esses são os primeiros meses de bebê neste País, Julia Raiz
37. O mundo desdobrável: Ensaios para depois do fim, Carola Saavedra
38. Um manifesto ciborgue |O Manifesto das Espécies de Companhia, Donna J. Haraway
39. A filha perdida, Elena Ferrante
40. O riso da medusa, Hélène Cixous
Bibliografia Complementar
1. Tudo sobre o amor, bell hooks
2. Um amor conquistado: o mito do amor materno, Elisabeth Badinter
3. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista, Silvia Federici
4. Essential Labor: mothering as social change, Angela Garbes
5. Plot, Claudia Rankine
6. Continuar a nascer, Mônica de Aquino
7. Cordão, Ana Freitas Reis
8. No princípio era a dança, Minês Castanheira
9. Aquário, Capicua
10. Ser-Rio, Deus-Corpo, Sara F. Costa
11. O caderno proibido, Alba de Céspedes
12. Afetos Vorazes, Vivian Gornick
13. Madre Soltera, Marina Yuszczuck
14. Vingar, Danielle Magalhães
15. Histórias do tempo do amém, Lívia Aguiar
16. A importância do pequeno almoço, Francisca Camelo
17. Um buraco com meu nome, Jarid Arraes
18. Direito de propriedade, Deborah Levy
19. O quarto branco, Gabriela Aguerre
20. Escrever, Marguerite Duras
21. A vulva é uma ferida aberta e outros ensaios, Gloria Anzaldúa
22. Ensinando comunidade, uma pedagogia da esperança, bell hooks
23. Why Call it Labor? On Motherhood and Art Work, Mai Abu El Dahab
Eu só agradeço por ser uma linha ou um nó desse novelo e seguir com vocês escrevendo nossas histórias. Muito amor pelo línguamãe, Gahbe e Cacau. <3